O nome da maranhense Kelly Araújo dos Santos (29), educadora popular e quilombola, ganhou destaque na última semana ao ser anunciado pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, para compor a equipe da pasta da Juventude da transição do novo governo Lula.
Oriunda da comunidade quilombola Santo Antônio dos Pretos, a 57 km de Grajaú, Kelly é graduada em Geografia pela UFMA e atualmente cursa o mestrado em História pela mesma instituição. Em 2020, foi eleita Secretária-geral do PT-MA, e também lidera a Secretaria de Estrutura e Planejamento da JPT Nacional.
Nesta entrevista ao Observador Maranhense, Kelly falou sobre a sua trajetória como educadora popular e quilombola, os desafios da equipe de transição, a representatividade maranhense no novo governo Lula e a construção da consciência política da juventude brasileira.
Observador – Até a indicação do seu nome, a equipe de transição do novo governo Lula só contava com dois maranhenses: Flávio Dino, ex-governador e senador eleito, e Sônia Guajajara, liderança indígena conhecida nacionalmente e deputada federal eleita. Por isso, antes de tudo, eu queria que você falasse um pouco de você, da sua trajetória até a indicação.
Kelly Araújo dos Santos – A minha trajetória se inicia em Grajaú, gosto de demarcar o lugar de onde eu vim, acho que as nossas origens explicam muito quem a gente é. Sou filha de uma mãe solo, que com muito esforço criou seus sete filhos. Minha mãe é concursada como zeladora e hoje coordena o EJA (Ensino de Jovens e adultos) de Grajaú.
Em 2005 a minha família descobriu que a nossa localidade, Santo Antônio dos Pretos, se enquadrava como quilombola. Aí começa uma luta pela titulação da nossa terra. Então eu costumo marcar 2005, quando eu tinha 12 anos, estratégico para a pessoa que eu sou hoje. Porque, acompanhando as lutas da minha comunidade, da minha família, fiquei muito instigada a tentar mudar minha realidade e utilizar os meus conhecimentos em prol da comunidade.
Aos 18 anos, em 2011, entrei na universidade e utilizei aquele espaço como uma maneira de lutar pelos direitos da minha comunidade, publicando trabalhos, dando palestras e oficinas. Então, a minha atuação política não vem de agora, ela vem sendo construída de diferentes maneiras.
É por isso que eu me defino como uma educadora popular e quilombola. Porque a educação foi o caminho que eu encontrei pra falar sobre a minha comunidade, pra criar possibilidades pra mais pessoas como eu dentro do meu território e, principalmente, denunciar sérios problemas que vinham acontecendo, como crimes de grilagem, desmatamento, a questão dos fazendeiros que há décadas estão no território e que só estão lá porque o nosso processo de titulação está parado.
Foi a partir dessa luta que eu consegui ocupar espaços importantes e, posteriormente, ingressar no Partido dos Trabalhadores, onde hoje atuo como Secretária-geral do partido no Maranhão e Secretária de Estrutura e Planejamento da JPT Nacional. Foi nesse papel que ajudei a construir propostas que estão constando no programa do presidente Lula para a juventude, e participei de escutas regionais com a militância jovem petista para pensar qual modelo de sociedade que a gente defende, quais são as pautas prioritárias que deveriam ser tratadas no Plano de Governo do nosso presidente e, principalmente, qual o perfil da nossa juventude, pra qual juventude a gente está falando.
Como vai ser a tua atuação na equipe de transição? Qual você considera que será o principal desafio nesse trabalho?
Acredito que o principal desafio é aprender a lidar com tudo isso. Apesar de eu já ter participado de outros processos, é sempre tudo muito novo, e, quando a gente leva isso para uma esfera federal, é claro que a gente vai ter imensas inquietações pra fazer um relatório qualificado, que apresente de fato o panorama dessa Secretaria Nacional de Juventude e quais serão os rumos de uma estrutura dessa nova gestão.
A nossa atuação no GT (grupo técnico) de Juventude vai ser identificar como está o funcionamento da Secretaria Nacional de Juventude depois desses quatro anos de governo Bolsonaro, quais medidas foram tomadas, o que deve ser revogado, o que pode ser mantido. Basicamente, o trabalho consiste em organizar a pasta para que o próximo gestor que for indicado tenha condições de desempenhar o seu trabalho da melhor forma possível.
Em relação ao trabalho, ele já começou. Ontem tivemos uma reunião inicial com a Gleise Hoffman e o Aloízio Mercadante, e hoje teremos outra com os demais membros do GT de Juventude, pra pensar esses processos, definir como serão as nossas reuniões, o formato, e de que maneira a gente pode desempenhar o trabalho para cumprir os prazos que nos foram colocados em relação aos relatórios.
Como você enxerga a equipe de transição como um todo? Considera que comunidades tradicionais e os povos originários estão bem representados? Tenho visto, por parte de representantes da própria esquerda, certa preocupação nesse ponto. Você acha que essa representatividade, ou a falta dela, vai dar o tom também do novo governo Lula ou é precipitado supor isso?
Eu acredito que o processo de transição tem sido muito importante e as nomeações estão saindo aos poucos. É importante a gente ter um pouco de cautela em tudo que se fala sobre a transição. A gente tem a narrativa, por exemplo, que vão ser mais de 300 cargos pagos com dinheiro público, quando na verdade a gente sabe que apenas 50 cargos serão remunerados e os restantes vão atuar de forma voluntária.
Em relação à presença de povos originários e comunidades tradicionais, acredito que a gente ainda tem que avançar bastante. A eleição do Lula significa uma tentativa de virada de mesa do poder, mas essa tentativa só será possível quando, de fato, os povos tradicionais estiverem ocupando esses espaços. E aí a gente tem dois contextos que são importantes. Existem os GTs (Grupos de Transição) e também os Conselhos Consultivos, que são grupos maiores. Segmentos que não foram contemplados nos GTs podem indicar pessoas pros Conselhos Consultivos.
Essa é a experiência que a gente vai ter, por exemplo, no GT de Juventude, onde nós já temos o Conselho Consultivo com lideranças indígenas, lideranças ligadas ao movimento dos trabalhadores rurais, ao próprio MST. Então eu acredito que o GT não fica por si só. Pra que ele funcione, é necessário que nós tenhamos a presença desse Conselho Consultivo.
É claro que a gente quer ver mais pessoas pretas, indígenas ocupando os espaços sem necessariamente estarem ligados a GTs específicos. Ou seja, não é porque é indígena que tem que estar unicamente no GT de povos tradicionais e originários, não é porque é negro que tem que estar exclusivamente no GT de igualdade racial.
É importante que a gente pense como esses GTs podem ser primordiais pra gente poder ter de fato a virada de mesa do poder. E é importante lembrar que os GTs não existem pra construir políticas públicas, porque nós já tivemos a fase de construção do programa de governo. Os GTs são justamente pra organizar a casa, as pastas, os ministérios e secretarias, fazer um levantamento do que pode ser mantido e do que tem que ser revogado e, principalmente, dar condições mínimas de levantamentos de dados para subsidiar o trabalho do próximo gestor que for assumir a pasta.
Apesar da importância da tua indicação, uma educadora popular e quilombola do interior do estado, a presença de maranhenses na equipe de transição, e de nordestinos como um todo, ainda é relativamente pequena. Qual a tua avaliação sobre isso? Acha que isso tem impacto no futuro governo? Como você enxerga o protagonismo do Maranhão e do Nordeste no novo governo Lula?
Essa composição dos Grupos Técnicos ainda não está fechada. Pra você ter uma ideia, de ontem pra hoje, mais dois maranhenses foram indicados para a equipe de transição da juventude, que foi o Neilson Marcos, que é ligado à juventude do MDB e é de São José de Ribamar, e a Bruna Paola, que é uma jovem ligada ao Rede Sustentabilidade, que atualmente mora em São Paulo, mas é de Sítio Novo. Então, essa equipe não está fechada, outras pessoas estão sendo colocadas, e eu acredito que mais nordestinos, mais maranhenses vão ser indicados.
Eu acredito que mais nordestinos serão incluídos nessas equipes de transição, o que vai permitir que a gente possa interferir de maneira positiva nessa virada da mesa do poder, onde o Nordeste possa ocupar espaços importantes, inclusive à frente de Ministérios e Secretarias. Porque as pessoas estão tendo uma ideia equivocada, como se o GT fosse basicamente a equipe que vai ficar durante os quatro anos de governo, quando, na realidade, os GTs vão cuidar apenas dessa transição.
As portas não estão fechadas para que os nordestinos e maranhenses possam assumir secretarias, coordenações e ministérios.
Flávio Dino e Sônia Guajajara podem ser ministros?
No momento, são meras especulações. A gente tem um cenário importante com a votação expressiva do Flávio Dino pro Senado, o que é muito fruto do seu trabalho enquanto governador, quando conquistou referência nacional em muitos momentos importantes.
E nós temos a Sônia, liderança indígena que foi eleita pelo estado de São Paulo e que compõe a bancada do cocar. Esses nomes estão muito fortes até o momento, mas acredito que a discussão vai ser muito mais ampla, principalmente porque a gente tem que pensar a governabilidade do presidente Lula, porque ele tem que ter um aparato de deputados federais e senadores para dar sustentação ao seu governo, mas ao mesmo tempo eu entendo que é legítimo esse chamamento dessas duas figuras tão importantes a nível nacional pra essa construção, pra esse governo do presidente Lula que vem sendo tão ansiosamente debatido.
Nada está certo, mas a citação já é um indicativo que maranhenses e nordestinos podem ocupar espaços importantes no governo.
A gente testemunhou nos últimos anos uma escalada na propagação de Fake News, desinformação e uma guinada de parte da juventude brasileira à extrema direita. Hoje, em frente a quartéis, nas redes sociais, a gente vê jovens pedindo golpe de Estado. Como você avalia que a gente chegou nesse ponto? O que deve ser feito pra resgatar – ou construir – a consciência política da juventude brasileira?
As redes sociais tiveram papel fundamental durante a pandemia, e começaram a potencializar alguns discursos, inclusive de jovens reacionários e negacionistas, que encontraram nessas ferramentas (kawaii, tiktok e o próprio YouTube) um campo aberto para propagar desinformação e Fake News.
Então eu costumo sempre usar o exemplo do exercício da escuta e a importância do filtro. A gente tem uma geração que consome a todos os momentos vários conteúdos e que não consegue fazer essa dissociação do que é falso ou verdadeiro. Informação é poder. E hoje a gente vê a informação colocada pra potencializar o discurso de ódio.
Pra resgatar a consciência política da juventude brasileira é necessária, em primeiro lugar, a construção dessa consciência política. A gente ainda está muito aquém do potencial da nossa juventude.
A gente tem, por exemplo, uma juventude “nem-nem”. Nem estuda, nem trabalha, uma juventude que, por diversos fatores, não consegue se inserir no mercado de trabalho. A expansão da universidade não garante a permanência desses estudantes na academia. Então são uma série de fatores que são extremamente decisivos para que a gente ainda não tenha de fato uma consciência política.
E essa consciência política tem que estar atrelada a uma consciência de classe, a uma consciência de raça, pra que assim, mesmo quando a gente tenha perspectivas diferentes, a gente consiga ter uma relação fraterna, solidária, democrática.
Porque a grande problemática não é ser direita ou esquerda, o maior problema é o extremismo que vem sendo embasado através das fake News e da desinformação. Hoje, infelizmente, as redes sociais criaram uma série de doutores leigos nos mais variados assuntos. E a política, quando ela não é tratada de maneira séria, ela contribui pra que esses discursos sejam potencializados.
A gente tem o descrédito em relação à política, que muitas vezes é tratada como um time de futebol, que muita gente acha que só pode ser debatida durante o campeonato, que são as eleições, e depois disso as pessoas simplesmente não se importam.
Então, debater política é debater como é que está o saneamento básico na sua rua, como a gente pode melhorar isso, como é a participação das pessoas nas tomadas de decisões, quem são os políticos que nós estamos elegendo; é entender que esse olhar atento interfere inclusive na retirada ou manutenção de direitos.
A gente tem muitos espaços pra garantir essa consciência política, que perpassa por uma reeducação, inclusive sobre a utilização das mídias. Eu não falo de regulamentação ou restrição, mas é importante que a gente consiga criar dentro da sociedade uma consciência coletiva de separar o joio do trigo. Tudo passa pela educação.